português / english
.
.
to BIO or not to BIO. Essa é a questão / to BIO or not to BIO. That’s the question, Nuno Ribeiro
(ano XII . no XV . 2025 )
Breves notas sobre A Revolução de Uma Palha (1978) / Brief Notes on The One-Straw Revolution (1978), João Pedro Soares
(10 Anos . 10 Years . no. XIV . 2024 – 2025)
A Política dos alimentos na aula em O Mercador de Veneza de Shakespeare / The classroom politics of food in Shakespeare’s The Merchant of Venice, Susan S. Deborah
(ensaio / essay – no. VIII. 2016-17)
Comer ou Não Comer: Estudos Alimentares na Academia Indiana / To Eat or Not to Eat: Food Studies in the Indian Academia, S. Susan Deborah
(ensaio / essay – no. VII. 2016)
.
.
.
Lisbon Spice Rack
um projeto artístico desenvolvido por Rain Wu, Mariana Sanchez Salvador e Inês Neto dos Santos_fotografias de Sara Pinheiro
.
.
Como podemos repensar a forma como comemos, começando não pelo que está no prato, mas pelo que cresce nas margens da terra e da água? O projecto Lisbon Spice Rack começa com esta questão, focando-se na flora selvagem comestível que cresce ao longo das margens do rio Tejo e na região de Lisboa.
A nossa equipa — composta por artistas e investigadores — procurou especialistas locais para explorar esta paisagem comestível. Com a generosa orientação da herbalista Fernanda Botelho e da bióloga Márcia Pinto, recolhemos halófitas selvagens e outras plantas comestíveis, transformando-as em temperos locais e sazonais. Estes condimentos foram a nossa porta de entrada: uma proposta subtil, mas radical, para uma transição ecológica. Em vez de revolucionar toda uma cultura alimentar, e se começássemos por mudar os nossos temperos?
O projeto questiona: poderá a forma como temperamos os nossos alimentos tornar-se um portal para hábitos alimentares mais conscientes e regenerativos? Como localizar sabores — através da colheita, preservação e partilha — para manter o diálogo com um lugar? Lisbon Spice Rack apresenta uma alternativa aos sistemas alimentares globais dependentes de cadeias de abastecimento extrativas. Devolve a agência ao consumidor, incentivando novas formas de prestar atenção ao que cresce aos nossos pés.
.
.
Após uma série de apresentações em forma de jantares, o Lisbon Spice Rack tomou forma física como uma prateleira de condimentos silvestres: campana-da-praia em conserva, kimchi salicórnia, dukkah de halófitas, zaatar Lisbonense e caril silvestre. Uma despensa localizada, concebida para ser sazonal, experimental e um ponto de partida para conversas. Trabalhar com plantas silvestres levanta questões essenciais: quem tem acesso a estes ingredientes? Quais são os limites ecológicos da colheita? O que acontece quando uma «erva daninha» se torna desejável? O nosso projeto dá espaço a estas tensões, reconhecendo que a regeneração deve andar de mãos dadas com a consciência social e política.
No terreno
Entre setembro e dezembro de 2024, o foco da nossa investigação foram as Salinas do Samouco — uma paisagem seminatural a sul de Lisboa, onde prosperam as halófitas. Estas plantas tolerantes ao sal crescem sem irrigação, transportadas pela água do rio e germinando em solos muitas vezes considerados não aráveis. A sua capacidade de resiliência e regeneração do solo responde diretamente às urgências climáticas que enfrentamos.
As halófitas têm a capacidade de sedimentar solo em zonas costeiras, preparando o terreno para que espécies menos tolerantes cresçam em torno — uma lição viva de coabitação e apoio mútuo. Como nos disse a bióloga Márcia Pinto, o seu trabalho de conservação começou com as aves, mas rapidamente se expandiu: para salvar uma espécie, é preciso salvar todo o ecossistema.
Na nossa investigação e trabalho de campo, provámos e recolhemos salicórnia (salgada e suculenta), salgadeira (mentolada e fresca), campana-da-praia (medicinal e herbácea) e valverde-dos-sapais (suculenta e crocante). Cada planta entrou na nossa cozinha, onde explorámos processos como secagem, fermentação, cristalização e cura para desenvolver uma biblioteca de sabores — um arquivo sensorial das ecologias locais.
Através deste processo, questionámos: podemos comer com uma mão no prato e outra na terra onde os nossos alimentos crescem?
.
.
À mesa
Em dezembro de 2024, em colaboração com o restaurante À Mesa do CAM, à data recém-inaugurado no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, apresentámos um menu que re-imaginava pratos tradicionais com as halófitas que colhemos e processámos:
– Sopa de Grão com Acelgas-do-Mar em vez de espinafres
– Papas de Milho com legumes assados e pesto de Salgadeira
– Bolo de castanha e amêndoa com caramelo salgado de salicórnia
Cada prato foi apresentado com as ideias ecológicas que o moldaram: desde a resiliência das halófitas até às histórias culturais do plantio complementar. Por exemplo, as Papas de Milho fazem referência ao método das «Três Irmãs», presente na agricultura ancestral sul-americana — onde milho, feijão e abóbora são cultivados juntos num sistema de apoio mútuo, cada espécie preparando o terreno para a seguinte.
Em junho de 2025, uma versão de verão deste menu foi apresentada publicamente na Casa do Jardim da Estrela em Lisboa, em colaboração com o coletivo Joy Food Experiences, dando continuidade à nossa experiência e interesse em contar histórias comestíveis:
– Salada de grão-de-bico com Valverde-dos-Sapais e pedaços de Papas de Milho grelhados
– Pêssego assado, crumble de avelã com caramelo salgado de salicórnia
– Sopa fria de melão com beldroega-do-mar
Uma soda fermentada com tomilho-do-mato e massa mãe deu as boas-vindas aos convidados, enquanto uma gelatina de Campana-da-Praia preparava o paladar para a refeição que se seguiria. O nosso pão foi feito com pães amanhecidos, secos e duros, reaproveitados numa nova massa — um convite para pensar de forma criativa sobre o desperdício alimentar. Uma seleção de patês e manteigas de halófitas acompanharam este pão, tornando-se num estudo sobre a biodiversidade local e a possibilidade de sabores enraizados nas margens do Tejo.
Com olhos no futuro
Sabendo que o projeto concluiu a sua residência de três meses em dezembro de 2024, esperamos que o seu impacto continue através do Spice Rack físico, co-desenhado com o coletivo Fahrenheit 180 (formado por Jeremy Morris e Luca Carlisle) que será instalado no CAM e acessível ao público. Um website será brevemente lançado, onde partilharemos os nossos métodos, reflexões e uma seleção de receitas — ferramentas para repensar o futuro da alimentação através do nosso entorno e paladar.
.
.
Em última análise, vemos o Lisbon Spice Rack como uma metodologia — que pode ser adaptada a diferentes cidades e climas, cultivando uma rede de conhecimento sobre alimentos silvestres enraizada na localidade, sazonalidade e cuidado.
Este projeto insere-se na residência Eating Between Tides, no contexto do projeto europeu Bauhaus of the Seas Sails, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e Centro de Arte Moderna, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e do Instituto Superior Técnico.
.
*Rain Wu é uma artista e arquiteta taiwanesa radicada em Londres. Utiliza materiais perecíveis para explorar a natureza através de desenhos, esculturas, performances com comida, filmes-ensaio e instalações. Atualmente, leciona na Goldsmiths, University of London.
*Mariana Sanchez Salvador é uma arquiteta e investigadora portuguesa, com doutoramento em Estudos Urbanos sobre a história da paisagem alimentar de Lisboa. Para além de conferências e publicações científicas, colabora em projetos artísticos e exposições de Arquitetura e Design.
*Inês Neto dos Santos é artista multidisciplinar, cuja prática se foca nas dimensões sócio-políticas, culturais e ecológicas dos alimentos. Em 2022, co-fundou o primeiro Food & Art Alternative MA com a artista Nora Silva, através do seu colectivo The Gramounce. http://www.ines-ns.com
*Sara Pinheiro nasceu em 1991, nos Açores, e atualmente é fotógrafa e videógrafa baseada em Lisboa. Após concluir a licenciatura em Arquitetura (ISCTE), estudou no Instituto Português de Fotografia (IPF). Atualmente, trabalha como fotógrafa freelancer para várias publicações e agências de renome nacional. Mantém-se em constante procura de novos desafios, com o objetivo de continuar a aprimorar as suas competências.
.
Lisbon Spice Rack
an artistic project by Rain Wu, Mariana Sanchez Salvador e Inês Neto dos Santos_photography by Sara Pinheiro
.
.
How might we rethink the way we eat — starting not with what’s on the plate, but what’s scattered across the edges of land and water? Lisbon Spice Rack begins with this question, turning to the wild, edible flora growing along the banks of the Tagus River and in the wider Lisbon region.
Formed in response to an open call, our team — artists and researchers — sought local expertise to explore the edible landscape. With the generous guidance of forager Fernanda Botelho and biologist Márcia Pinto, we gathered wild halophytes and other plants, transforming them into locally rooted seasonings. These condiments became our way in: a gentle yet radical proposition for ecological transition. Rather than overturning an entire food culture, what if we begin by changing our seasonings?
The project asks: can the way we flavour food become a portal into more conscious, regenerative habits of eating? Localising taste — through foraging, preserving, and sharing — to stay in conversation with the place. It offers an alternative to global food systems dependent on extractive supply chains. And it gives back agency to the eater, encouraging new forms of attentiveness to what grows at our feet.
.
.
After a series of dinner presentations, Lisbon Spice Rack took shape physically as a cabinet of wild condiments: pickled campana-da-praia, kimchi salicornia, halophyte dukkah, Lisbon zaatar and wild curry. A localised pantry designed to be seasonal, experimental and a conversation opener. Working with wild plants raises essential questions: who has access to these ingredients? What are the ecological limits of harvesting? What happens when a ‘weed’ becomes desirable? Our project holds space for these tensions, recognising that regeneration must go hand-in-hand with social and political awareness.
On the Ground
Between September and December 2024, we focused our research on the salt marshes of Salinas do Samouco — a semi-natural landscape south of Lisbon where halophytes thrive. These salt-tolerant plants grow without irrigation, carried in by river water and germinating in soils often deemed unarable. Their capacity for resilience and soil regeneration speaks directly to the climate urgencies we face.
Halophytes sediment soil in lower zones, preparing the ground for less tolerant species to grow higher up — a living lesson in cohabitation and mutual support. As biologist Márcia Pinto told us, her conservation work began with birds, but quickly expanded: to save a species, you need to save the whole ecosystem.
In our research and fieldwork, we tasted and gathered Salicórnia (salty and juicy), Salgadeira (minty and fresh), Campana-da-Praia (medicinal and herbal), and Valverde-dos-Sapais (succulent and crispy). Each plant entered our kitchen, where we explored processes such as drying, fermenting, candying and curing to develop a library of flavours—a sensory archive of local ecologies.
We asked with each of the spices: may we eat with one hand on our plate, and another in the soil where our food grows?
.
.
On the Table
In December 2024, in collaboration with À Mesa do CAM, the newly opened restaurant at Gulbenkian’s Modern Art Center, we presented a menu that reimagined traditional dishes with foraged discoveries:
– Sopa de Grão with Acelgas-do-Mar instead of spinach
– Papas de Milho with roasted vegetables and Salgadeira pesto
– Chestnut and almond cake with salted Salicórnia caramel
Each dish was introduced with the ecological ideas that shaped it: from the resilience of halophytes to the cultural histories of companion planting. For instance, the Papas de Milho referenced the “Three Sisters” method from ancestral South American agriculture — corn, beans, and squash grown together in a system of mutual support, each species preparing the ground for the next.
In June 2025, a summer version of the menu was presented publicly at Casa do Jardim da Estrela, in collaboration with Lisbon’s food art collective Joy Food Experiences, furthering our experiment in edible storytelling:
– Chickpea salad with Valverde-dos-Sapais and grilled Papas de Milho chunks
– Roasted peach, hazelnut crumble with salted salicornia caramel
– Cold melon soup with beldroega-do-mar
A naturally fermented soda made with Tomilho-do-mato and sourdough starter welcomed guests, while a palate cleanser of Campana-da-Praia jelly prepared them for the meal to come. Our bread was made from old loaves, reworked into fresh sourdough—an invitation to think through food waste creatively. A selection of halophyte spreads served alongside it became miniature studies in local biodiversity and the possibility of flavour rooted in place.
Looking Ahead
As the project concludes its three-month residency at CAM, we hope its impact continues through the physical Spice Rack co-designed with Jeremy Morris & Luca Carlisle (Farenheit180), to be installed at CAM and accessible to the public. A companion website will share our methods, reflections, and a selection of recipes — tools for rethinking food futures through taste and place.
.
.
Ultimately, we see Lisbon Spice Rack as a methodology—one that might be adapted across cities and climates, growing a network of wild food knowledge rooted in locality, seasonality, and care.
This project is part of the Eating Between Tides residency, within the framework of the European initiative Bauhaus of the Seas Sails, organized by the Calouste Gulbenkian Foundation and its Modern Art Center (CAM), with the support of the Lisbon City Council and Instituto Superior Técnico.
.
*Rain Wu is a London-based Taiwanese artist and architect, she uses perishable materials to explore nature through drawings, sculptures, food performances, essay films, and installations. She currently lectures at Goldsmiths University of London.
*Mariana Sanchez Salvador is a Portuguese architect and researcher, with a PhD in Urban Studies on the history of Lisbon’s Foodscape. Besides scientific conferences and publications, she contributes to artistic projects and Architecture and Design exhibitions.
*Inês Neto dos Santos is a multi-disciplinary artist, whose practice is centred around food and its socio-political, cultural and ecological dimensions. In 2022, she co-founded the first Food & Art Alternative MA with artist Nora Silva, as part of their collective The Gramounce.
*Sara Pinheiro was born in 1991, in Azores, and she’s now a Lisbon based photographer and videographer. After graduating in Architecture (ISCTE) she studied at the Portuguese Photography Institute (IPF). Sara is currently a freelancer photographer on several publications and agencies with national renown. She is keeping herself on the constant look out for new challenges, so she can keep refining her skills.
.
.
.
to BIO or not to BIO
Essa é a questão
por Nuno Ribeiro
.
.
Quando nos anos 70 se falava em Portugal em agricultura biológica era em círculos muito restritos de apaixonados pela Natureza e revoltados pela forma como se fazem as coisas. Neste caso, os alimentos. A Bélgica financiava jovens agricultores inspirados num campo dito experimental porque contrário ao sistema de produção agrícola industrial. Tantos anos depois, pouco se fala e menos se opta, pelo que é BIO.
O número de opções de alimentos provenientes de agricultura biológica ainda é bastante reduzido, apesar dos líderes da distribuição de alimentos já manifestarem nos seus espaços comerciais interesse pelo segmento. A U.E. tem o objetivo de que 25% da produção agrícola em 2030, seja proveniente de agricultura biológica. Com o nível de informação que dispomos nos dias de hoje, sabemos todos, ou pelo menos muitos, que não temos muito interesse em continuar a alimentar a cadeia de produção, distribuição e consumo de alimentos com base nas práticas industriais atuais, em que se utilizam elevadas doses de contaminantes altamente destrutivos.
Not BIO é a forma generalizada de produção alimentar, dependente das normativas que saem dos laboratórios químicos e farmacêuticos, descritas em manuais de utilização com informação e classificação toxicológica. Um bom exemplo para ilustrar a utilização de agentes químicos nocivos ao meio-ambiente e à humanidade na produção de alimentos é o caso do vinho. Frequentemente exaltado pelos seus aromas e sabores, apesar do elevado número de amostras dos vinhos que circulam na U.E. conterem resíduos elevados de pesticidas, alguns carcinogénicos e mutagénicos.
Este tipo de informação deveria ser explícito na rotulagem dos produtos, informando devidamente o consumidor. Não é o que acontece. Para além de outras estratégias das marcas, que utilizam expressões e até certificações enganadoras para qualificar os produtos.
O exemplo da utilização da palavra ‘natural’ em tudo que é coisa ou as expressões anglo-saxónicas, agora tão frequentemente utilizadas, do free-range e do farm-to-table, são mais estratégias de marketing do que preocupações humanitárias com a preservação do meio ambiente ou com o fenómeno do climate change, que acabam por se incorporar no léxico do dia a dia, mas não mudam nada ou quase nada.
Continua em aberto a discussão se um determinado índice de glifosato* poderá provocar cancro no fígado e nos rins. No entanto é espalhado em larga escala nos campos agrícolas, por todo o mundo, quer como herbicida, quer como dissecante na época da colheita, para matar e secar a planta, com elevados benefícios financeiros e elevados custos no contexto da saúde pública.
A escolha entre BIO e o not BIO não é apenas uma questão de consumo, mas sobretudo um posicionamento político. Ao contrariar a tendência da indústria e pensar num futuro onde as pessoas e o planeta sejam prioridade.
Alimentos saudáveis e seguros não podem ser produzidos com base nos sistemas e processos desenvolvidos pela fileira da agricultura industrial. A agricultura biológica é a única alternativa viável para construir um futuro mais justo e sustentável para todos.
BIO é BIO !
nota: carne e peixe BIO é assunto para próximos capítulos.
*O glifosato (N-(fosfonometil)glicina) é um herbicida sistémico de amplo espectro e dissecante de culturas.
.
*Nuno Ribeiro nasce no final dos anos 50 em Marvila, Lisboa. O sistema educativo fascista tentou, brutalmente, desde o primeiro dia, calar o seu “lirismo”. Contudo, em vão. A tentação de uma carreira nas artes, mostra-lhe outros caminhos. Encontra na edição um espaço de experimentação e desenvolve competências, nomeadamente na fotografia. No capítulo da paginação aproxima-se das tecnologias digitais e no final do anos 80 fascina-se com o movimento cyberbunk. Esta vanguarda literária vai ser responsável por mais de 20 anos de carreira na engenharia informática (high-end computing).
Um fascínio desmesurado pelo reino vegetal leva-o numa deriva pelos continentes e numa busca ávida de conhecimento que na prática faz com que deixe jardins por onde passa. Numa perspetiva de phase-out dedica-se ao empreendedorismo sustentável. É vegano e defensor dos métodos de produção biológicos.
.
.
to BIO or not to BIO
That´s the question
.
.
When in the 70s people talked about organic farming in Portugal, it was in very restricted circles of people who were passionate about nature and revolted by the way things were done. In this case, food. Belgium financed inspired young farmers, in an experimental field, because it was contrary to the industrial agricultural production system. So many years later, little is said and quite low interest about what is BIO.
The number of food options from organic farming is still quite small, despite food distribution leaders already expressing interest in the segment in their commercial spaces. The EU has the objective that 25% of agricultural production in 2030 comes from organic farming. With the level of information we have today, we all know, or at least many, that we do not have much interest in continuing to feed the food production, distribution and consumption chains based on current industrial practices, in which high doses of highly destructive contaminants are present
Not BIO is the widespread form of food production, dependent on the regulations that come out of chemical and pharmaceutical laboratories, described in user manuals with information and toxicological classification. A good example to illustrate the use of chemical agents harmful to the environment and humanity in food production is the case of wine. Often praised for its aromas and flavors despite the high number of wine samples circulating in the EU containing high pesticide residues, some of which are carcinogenic and mutagenic.
This type of information should be explicit on product labeling, duly informing the consumer. That’s not what happens. In addition to other brand strategies, which use misleading expressions and even certifications to qualify products. The example of the use of the word ‘natural’ in everything or the Anglo-Saxon expressions, now so frequently used, of free-range and farm-to-table, are more marketing strategies than humanitarian concerns of preserving the environment or the phenomenon of climate change, which end up being incorporated into the everyday lexicon, but do not change anything or almost nothing.
It is still open to debate whether a certain level of glyphosate* could cause liver and kidney cancer. However, it is spread on a large scale in agricultural fields throughout the world, either as a herbicide or as a desiccant at harvest time, to kill and dry the plant, with high financial benefits and high costs in the context of public health. The choice between BIO and not BIO is not just a question of consumption, but above all a political position. By going against the industry trend and thinking about a future where people and the planet are a priority.
Healthy and safe food cannot be produced based on the systems and processes developed by the industrial agriculture sector. Organic farming is the only viable alternative to building a fairer and more sustainable future for everyone.
BIO is BIO !
note: BIO meat and fish is the subject of future chapters.
*Glyphosate (N-(phosphonomethyl)glycine) is a broad-spectrum systemic herbicide and crop desiccant.
.
*Nuno Ribeiro was born in the late 1950s in Marvila, Lisbon. The fascist education system tried brutally, from the very first day, to silence his “lyricism”. However, in vain. The temptation of a career in the arts showed him other paths. He found a space for experimentation in publishing and edition and developed skills, particularly in photography. Trough DTP (desktop publishing), he approached digital technologies and in the late 1980s he became fascinated with the cyberbunk movement. This literary vanguard would be responsible for more than 20 years of a career in high-end computer engineering. A boundless fascination for the plant kingdom led him on a drift across continents and in an avid search for knowledge that in practice led him to leave gardens wherever he went. In a phase-out perspective, he dedicated himself to sustainable entrepreneurship. He is vegan and advocate of organic production methods.
.
.
.
Breves notas sobre A Revolução de Uma Palha (1978)
João Pedro Soares
.
Dia 17 de Junho de 2024 foi aprovada perante a União Europeia a Lei do Restauro da Natureza. Uma lei que prevê a restauração gradual de ecossistemas, naquilo que é um passo importante nas futuras políticas ambientais europeias. Tal como o comunicado de imprensa indica:
Para alcançar os objetivos globais da União, os Estados-Membros devem restaurar, pelo menos, 30 % dos habitats abrangidos pela nova legislação (desde florestas, prados e zonas húmidas a rios, lagos e leitos de corais) em mau estado, para estarem em boas condições até 2030, aumentando para 60 % até 2040 e 90 % até 2050. [1]
Se de facto tais metas serão atingidas permanece por ser descoberto nas próximas décadas, mas tal tomada de decisão política reata uma velha questão dentro dos estudos ecológicos: uma mudança do paradigma de conservação ambiental, para o de restauro ambiental implica considerar, precisamente, em que base se começa este restauro, que tipo de acção se deve procurar. Importa a este respeito lembrar o contributo de um dos grandes pensadores e pioneiros da agricultura regenerativa: Masanobu Fukuoka.
Em 1978 publica o paradigmático livro A Revolução de Uma Palha, e nele estabelece alguns princípios fundamentais para se pensar uma prática agrícola ecologicamente consciente. Esta obra prima traduzida por Larry Korn, Chris Pearce e Tsune Kurosawa, resulta de uma junção de conversas, escritos e lições que Fukuoka deu ao longo da sua vida, muitas vezes a propósito ou derivado das visitas que agricultores, estudantes e investigadores, faziam à sua quinta algures na ilha de Shikoku.
.

capa da mais recente edição do New York Review Books, com introdução de Frances Moore e prefácio de Wendell Berry
.
Masanobu Fukuoka teve uma formação científica, obtendo graduação em Biologia Aplicada pela Universidade de Gifu, tendo depois trabalhado na agência alfandegária de Yokohama na divisão de inspeção de plantas. Mas, após um momento de revelação, decide abdicar da carreira de investigação laboratorial, e instala-se na antiga quinta do seu pai onde acaba por permanecer enquanto agricultor até ao fim da sua vida. O legado de Fukuoka está intrinsecamente conectado às práticas de agricultura orgânica, sendo este livro uma das principais leituras presentes nas estantes de qualquer praticante – ou simpatizante – de agricultura regenerativa.
Na leitura do livro encontra-se uma escrita descomprometida, clara e directa, em sincronia com o que parecem ser as matrizes do pensamento de Fukuoka: descomplicar o mundo, simplificar as práticas agrícolas, renegar a super-industrialização e tecnocracia eminente no cultivo e produção de bens alimentares. Tal como o próprio indica:
O meu objetivo era uma forma de cultivo agradável e natural, que tornasse o trabalho mais fácil em vez de mais difícil. “Que tal não fazer isto? Que tal não fazer aquilo? – essa era a minha maneira de pensar. Finalmente cheguei à conclusão de que não havia necessidade de arar, de aplicar fertilizante, de fazer composto, de usar insecticida. No fundo, existem poucas práticas agrícolas que são realmente necessárias.
Esta posição radical de prática agrícola acaba por recuperar tudo do local de cultivo, com zero desperdício, reutilizando as sobras, ou a matéria prima inaproveitada como fontes de fertilizante. Evitando a perturbação do solo, e garantindo que, ao invés de uma monocultura, a zona de cultivo se mantém heterogénea, repleta de diferentes organismos vivos. Em suma, a proposta de Fukuoka é a criação de ecossistemas de cultivo, que se organizem de acordo com princípios naturais, e se autorregulem mediante essas mesmas condicionantes. A sua filosofia de uma agricultura onde “não se faz nada”, acaba por atribuir o controlo aos próprios mecanismos do mundo natural para criarem as condições de homeostase ideias para a proliferação de cultivos, ao humano cabe apenas uma função cuidadora.
“Não fazer nada” implica assim um posicionamento atípico face à hegemonia do capitalismo actual, às invetivas dos grandes complexos agroalimentares, com os seus domínios exacerbantes de sementes geneticamente modificadas. É uma posição que procura retornar a um estado de coisas mais equilibrado, menos extrativo e no qual exista uma renovada consciência sobre o papel do humano num ecossistema. Sobre isto, Fukuoka considera que: “A razão pela qual as técnicas melhoradas do homem parecem ser necessárias é que o equilíbrio natural foi tão perturbado de antemão por essas mesmas técnicas que a terra se tornou dependente delas.”[2]
A redução do impacto nos solos e nas práticas agrícolas que este livro propõe, surgem assim como formas de recuperar esse equilíbrio perdido. Pensar em formas de coabitar o mundo que contemplem uma redução do desperdício, um reaproveitamento dos recursos naturais, um respeito pelos processos intrínsecos e altamente complexos da Natureza. Mas também, como vemos nos capítulos finais, uma reeducação do nosso papel enquanto consumidores: “Quando questionados sobre o porquê de comermos alimentos, poucos pensam além do facto de que os alimentos são necessários para sustentar a vida e o crescimento do corpo humano. Além disso, porém, há a questão mais profunda da relação entre a comida e o espírito humano.”[3]
Fukuoka unifica o cultivo agrícola e a produção alimentar como uma forma de prática espiritual, tornando a agricultura regenerativa um posicionamento eticamente ambientalista. Apela ao consumo orgânico como bem essencial da humanidade, e crítica a exploração do ideário “biológico” enquanto marketing (ou aquilo que hoje apelidamos de green washing). Na concepção deste pensador, a Natureza providencia para toda a gente, e o produto orgânico não deveria ser mais caro que o produto industrial, esta inversão de valores económicos nos bens alimentares revela – do ponto de vista de Fukuoka – uma falha na nossa percepção enquanto consumidores, e um problema naquilo que podemos chamar de “cultura da comida”.

Masanobu Fukuoka a cultivar os arrozais da sua quinta em Shikoku
Recuperando a lei do restauro de ecossistemas, acaba por ser inevitável não reflectir sobre as palavras deste pensador, e considerar uma restauração que nos permita caminhar para um modo mais selvagem de fazer as coisas, ou, na argumentação de Fukuoka, de não fazer certas coisas. O restauro dos habitats enquanto uma possibilidade de finalmente se reenquadrar este tipo de acção num prisma que liberte os ecossistemas das pressões antropogénicas, e, por acréscimo, que renove as formas com que a humanidade faz deles uso, sobretudo, através de um novo paradigma agrícola, cada vez mais necessário.
A Revolução de Uma Palha torna-se assim um livro essencial na medida em que desafia a forma como percecionamos os alimentos e a sua produção, e altera radicalmente o paradigma das práticas agrícolas. Embora escrito no final da década de 70, é hoje um livro imerso na contemporaneidade, que convoca uma série de pensamentos que se encontram na ordem do dia, e oferece uma refrescante visão minimalista de entender o mundo e de recuperar a nossa relação com os processos naturais.
[1] Excerto do comunicado de imprensa. Pode ser acedido em: https://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20240223IPR18078/parlamento-aprova-nova-lei-para-restaurar-pelo-menos-20-dos-habitats-da-ue
[2] Tradução do autor. Fukuoka, Masanobu. The One-Straw Revolution, New York Review Books, 2009, p.15
[3] Ibid. p.134
.
*João Pedro Soares (Almada, 1995) é cineasta, programador cultural e doutorando em Estudos Artísticos na FCSH. Encontra-se a trabalhar na sua tese sobre Ecologia no Documentário Português Contemporâneo.
.
.
.
Brief Notes on The One-Straw Revolution (1978)
João Pedro Soares
.
On June 17, 2024, the Nature Restoration Law was approved by the European Union. A law that provides for the gradual restoration of ecosystems which is an important step in future European environmental policies. As the press release states:
To achieve the Union’s overall objectives, Member States must restore at least 30% of the habitats covered by the new legislation (from forests, grasslands, and wetlands to rivers, lakes, and coral beds) in poor condition, to be in good conditions by 2030, increasing to 60% by 2040 and 90% by 2050. [1]
Whether such goals will in fact be achieved remains to be discovered in the coming decades, but such political decision-making revives an old question within ecological studies: a change from the paradigm of environmental conservation to that of environmental restoration implies considering, precisely, what basis on which to begin this restoration, what type of action should be sought. It is important in this regard to remember the contribution of one of the great thinkers and pioneers of regenerative agriculture: Masanobu Fukuoka.
In 1978 he published the paradigmatic book The One-Straw Revolution, and in it, he established some fundamental principles for thinking about an ecologically conscious agricultural practice. This masterpiece translated by Larry Korn, Chris Pearce, and Tsune Kurosawa, results from a combination of conversations, writings, and lessons that Fukuoka gave throughout his life, often related to or derived from visits that farmers, students, and researchers made to his farm somewhere on the island of Shikoku.

cover of the most recente edition of New York Review Books, with an introduction by Frances Moore and foreword by Wendell Berry
Masanobu Fukuoka had a scientific background, obtaining a degree in Applied Biology from Gifu University, and then working at the Yokohama customs agency in the plant inspection division. But, after a moment of revelation, he decides to give up his career in laboratory research and settles on his father’s old farm where he ends up remaining as a farmer until the end of his life. Fukuoka’s legacy is intrinsically connected to organic farming practices, with this book being one of the main reads on the shelves of any practitioner – or supporter – of regenerative agriculture.
When reading the book, one finds uncompromised, clear, and direct writing, in sync with what seem to be the matrices of Fukuoka’s thinking: uncomplicating the world, simplifying agricultural practices, denying super-industrialization and eminent technocracy in cultivation and production of food goods. As he indicates:
My goal was a pleasant and natural way of farming that made the work easier rather than harder. “How about not doing this? How about not doing that? – that was my way of thinking. I finally came to the conclusion that there was no need to plow, apply fertilizer, make compost, or use insecticide. Ultimately, there are few agricultural practices that are truly necessary.[2]
This radical position of agricultural practice ends up recovering everything from the cultivation site, with zero waste, reusing leftovers, or unused raw materials as sources of fertilizer. Avoiding soil disturbance, and ensuring that, instead of a monoculture, the cultivation area remains heterogeneous, full of different living organisms. In short, Fukuoka’s proposal is the creation of cultivation ecosystems, which are organized according to natural principles, and self-regulate through these same conditions. Its philosophy of agriculture where “nothing is done” ends up attributing control to the mechanisms of the natural world to create the ideal homeostasis conditions for the proliferation of crops, with humans only having a caring role.
“Doing nothing” thus implies an atypical positioning in the face of the hegemony of current capitalism, the invective of large agri-food complexes, with their exacerbating dominance of genetically modified seeds. It is a position that seeks to return to a more balanced, less extractive state of affairs and in which there is a renewed awareness of the role of humans in an ecosystem. Regarding this, Fukuoka considers that: “The reason why man’s improved techniques seem to be necessary is that the natural balance was so disturbed beforehand by these same techniques that the earth became dependent on them.”[3]
The reduction of the impact on soils and agricultural practices that this book proposes thus emerges as a way to recover this lost balance. Think about ways of cohabiting the world that include reducing waste, reusing natural resources, and respecting nature’s intrinsic and highly complex processes. But also, as we see in the final chapters, a re-education of our role as consumers: “When asked why we eat food, few think beyond the fact that food is necessary to sustain the life and growth of the human body. Beyond that, though, is the deeper question of the relationship between food and the human spirit.”[4]
Fukuoka unifies agricultural cultivation and food production as a form of spiritual practice, making regenerative agriculture an ethically environmentalist stance. It calls for organic consumption as an essential asset of humanity and criticizes the exploitation of “biological” ideas as marketing (or what we today call greenwashing). In this thinker’s view, nature provides for everyone, and organic products should not be more expensive than industrial products, this inversion of economic values in food reveals – from Fukuoka’s point of view – a flaw in our perception as consumers and a problem in what we can call “food culture”.

Masanobu Fukuoka sowing his rice on his farm on the island of Shikoku
Recovering the law of ecosystem restoration, it ends up being inevitable not to reflect on this thinker’s words, and consider a restoration that allows us to move towards a more feral way of doing things, or, in Fukuoka’s argument, of not doing certain things. The restoration of habitats is a possibility of finally reframing this type of action in a perspective that frees ecosystems from anthropogenic pressures, and, in addition, that renews how humanity makes use of them, above all, through a new agricultural paradigm, increasingly necessary.
[1] Excerpt from the press release. It can be accessed at: https://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20240223IPR18078/parlamento-aprova-nova-lei-para-restaurar-pelo-menos-20-dos-habitats-da-ue
[2] Fukuoka, Masanobu. The One-Straw Revolution, New York Review Books, 2009, p.15
[3] Ibid.
[4] Ibid. p.134
.
*João Pedro Soares (Almada, 1995) is a filmmaker, cultural programmer, and doctoral student in Artistic Studies at Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. He is working on his thesis on Ecology in Portuguese Contemporary Documentary.
.
.
.
A Política dos alimentos na aula
em O Mercador de Veneza de Shakespeare
por Susan S. Deborah*
Ensinar Shakespeare 400 anos depois de suas peças terem sido escritas e representadas é sempre uma experiência única com muitas surpresas inesperadas. Sou responsável por 35 estudantes que estão no seu primeiro ano B. A. e a faculdade situa-se em Goa, Índia ocidental. O assunto de referência é o carácter de Shylock, em O Mercador de Veneza, de Shakespeare. O texto foi lido e analisado no contexto de diversas questões e temas subjacentes, incluindo alimentares e vou tentar uma abordagem a como estes hábitos alimentares poderiam conduzir a uma exibição de conflito na sala de aula. Na peça, são os hábitos alimentares que permitem ao leitor compreender a abominação dos judeus pelos hábitos alimentares dos cristãos. A entrada de Shylock em O Mercador de Veneza ocorre quando este e Bassânio, discutem o vínculo de António. Quando Bassânio interpela Shylock: “Se lhe der prazer e quiser jantar connosco.” Shylock responde arrogantemente: “Sim, para sentir o cheiro de porco, para comer da casa de onde vosso profeta, o Nazareno, conjurou o demónio. Poderei comprar e vender convosco, conversar convosco, passear convosco, e assim por diante; mas não comerei convosco, nem beberei convosco, nem rezarei convosco. Que novidades há no Rialto? Quem é que vem chegando aqui? (I, III, 28-33)
O que me impressionou na passagem acima mencionada é a referência ao “porco” que é usada por Shylock para uma comunidade de pessoas − no caso, os cristãos. As linhas indicam como uma comunidade é referenciada exclusivamente pelos seus hábitos alimentares. Muito embora a deixa, “para comer da casa de onde vosso profeta, o Nazareno, conjurou o demônio?” aluda a uma referência da Bíblia, o tom de Shylock é claramente um misto de repugnância e de escárnio sobre o consumo de um determinado tipo de alimento.
Compartilhar mesa com alguém de uma comunidade diferente cujos hábitos alimentares são considerados tabu não é algo novo. Na Índia, o sistema de castas predominante divide as pessoas com base nos seus hábitos alimentares, juntamente com outras diversidades de castas e crenças religiosas. Se a Itália, no século XVI de Shakespeare, mostra antagonismos entre cristãos e judeus, a Índia do século presente não é diferente quando se trata de evitar certos tipos de alimentos e respectivas comunidades que consumam alimentos tabu. No local onde ensino alunos de diversas religiões e hábitos alimentares, mesmo que as diferenças não sejam compartilhadas secretamente e, antes, sejam compreendidas e honradas, o consumo de alguns alimentos é tabu. O século XVI italiano não parece diferente da Índia actual onde existe política, entre os praticantes de hinduísmo e das religiões islâmicas, no que respeita aos alimentos.
As pessoas que praticam o Islão, tal como os judeus, não consomem carne de porco, que lhes é proibida, “São-vos proibidos o animal morto (que morreu naturalmente), o sangue, a carne de porco, os animais que foram degolados sob a invocação de outro nome senão o de Allah “[Al-Corão 5: 3] (“Porque se abstêm os muçulmanos de carne de porco?”). Semelhante ao Alcorão, também o Antigo Testamento, nos livros de Deuteronómio, Levítico e Isaías, evitam que os judeus comam carne de porco, principalmente porque o porco é considerado impuro e impróprio para consumo.
A política de consumo de alimentos é um ponto de demarcação entre judeus e cristãos/hindus e muçulmanos. Mas, enquanto estes textos acima são lidos no meu grupo de estudantes muçulmanos, hindus e cristãos, descubro que eles expressam pensamentos contraditórios sobre Shylock e os seus hábitos alimentares. A questão da divisão dos alimentos tem tensões subjacentes para as pessoas de diversas comunidades na Índia. Os hindus e os muçulmanos não consomem porco enquanto os cristãos o fazem; da mesma forma, os cristãos e os muçulmanos consomem carne de bovino, o que os hindus não fazem − a minha classe reúne todos esses grupos e quando o tema veio à discussão, os alunos foram cautelosos sobre o caráter de Shylock e sentiram a possibilidades do mesmo poder acontecer no cenário Goês. Uma observação simples tem potencial para causar tensão comunitária e, portanto, Shylock, embora empatizado, foi condenado pelas suas vis observações sobre a comida. Os estudantes também sentiram que a Índia do século 21, apesar dos progressos em muitas áreas principalmente estudadas para o desenvolvimento, ainda tem que chegar a acordo no que respeita aos hábitos alimentares dos diferentes sectores da sociedade. A política de comer-carne e relacionada violência é semelhante à política de comer-porco. Enquanto o consumo e a venda de carne de bovino é proibido em quase 24 dos 29 estados da Índia, a Índia passou a ser o maior exportador de carne do mundo. A vaca, considerada santa e muitas vezes vista como uma mãe de abundância por muitos hindus, aufere o estatuto de um semideus tornando-se ilegal ser morta e consumida em diferentes propósitos. India Today, uma revista de notícias líder, na sua capa de 27 de outubro de 2015 escreve:
“Em 28 de setembro, uma segunda-feira ordinária, uma série de eventos extraordinários levou uma turba de hindus irados, a maioria deles proprietários de terra Thakurs, a marchar para aquela pequena galli (rua pequena) num ataque de raiva. Tinham ouvido rumores de que uma vaca-sagrada e para eles materna − tinha sido abatida, comida, e as suas entranhas despejadas num transformador elétrico na aldeia. . . . Mais de 1.000 pessoas foram para o beco onde Mohammad Akhlaq, 50, o suposto assassino de vacas e um dos poucos muçulmanos que vivem nesta parte da aldeia, acabava de preparar para a noite no terraço do primeiro andar. À medida que os gritos de “maaro, maaro” (mata, mata) ecoavam pelo beco, a multidão atravessou a porta azul claro de Akhlaq, golpeou a sua cabeça com uma máquina de costura e golpeou o seu filho dinamarquês de 22 anos com um tijolo “. (“Carne, proibição e derramamento de sangue.”)
A narrativa acima mencionada é apenas uma história que captura o cenário volátil que actualmente existe em certas partes da Índia. Os meus alunos estão bem cientes destas histórias e encontram o mesmo contexto num texto do século 16 que coloca o alimento como agente de conflito. A discussão sobre a política dos alimentos que não poderia ser contida no horário da aula, foi feita fora da sala de aula através de um questionário que foi administrado a alguns dos alunos. As respostas que eram de tipo descritivo, aprofundavam a utilização do alimento para denigrir uma secção/comunidade de pessoas. Shriharsha sente, “Shylock era um judeu e de acordo com suas crenças religiosas, eles não podiam consumir carne de porco, por isso se recusou a comer com Bassânio e António. Mas situações como esta criam tensão e, se observarmos o contexto da Índia onde pessoas de várias religiões vivem juntas, torna-se bastante conflituoso. Não podemos pedir a alguém para mudar os seus hábitos alimentares. Além disso, esse tipo de situações ampliam as nossas diferenças culturais/religiosas e tornam difícil as pessoas sentarem-se em conjunto. Devemos aprender a ajustar-nos e ser respeitosos uns com os outros, a fim de viver em harmonia.”
Shreya Singh observa: “Ninguém deve ser julgado ou sofrer por causa dos seus hábitos alimentares e fazê-lo cria um problema em países como a Índia, onde as pessoas têm os seus próprios rituais, crenças e costumes. Sendo um ser humano, é nossa responsabilidade que nos asseguremos de que ninguém seja discriminado por causa dos seus hábitos alimentares diferentes” (sic).
Abhishek Thakur diz: “Se uma situação como a de António e Bassânio acontecesse na Índia, poderia causar um grande problema, pois vivemos numa sociedade onde coexistem muitas religiões. A convivência entre um muçulmano e um cristão que se sentam juntos como bons amigos desfrutando da companhia um do outro, estragar-se-à se os hábitos alimentares se interpuserem entre eles “(sic).
Ao discutir a observação de Shylock e ao colocá-la no contexto da Índia, os alunos declaram unanimemente que os hábitos alimentares e a discriminação baseada em alimentos podem causar tensão e violência comunais. O cenário na Índia do século XXI e na Itália do século XVI não parecem muito diferentes quando se trata de discriminar as comunidades com base nos seus hábitos alimentares. As respostas dos alunos também reflectem a sua consciência sobre as implicações actuais da comida e da religiosidade na sociedade em geral. Apesar dos diferentes hábitos alimentares entre hindus, muçulmanos e cristãos, pelo menos no contexto do Colégio, essas diferenças não são vistas nem sentidas abertamente. Mas os alunos também não parecem negar a possibilidade da tensão surgir por causa de uma observação cáustica casual como a de Shylock. Além disso, tendo em mente a política de comer carne que afectou muitas pessoas, uma observação como a de Shylock desencadearia uma série de violências no país.
Numa nota mais leve, um aluno observa: “Se alguém comer vaca e porco, a sua aparência será semelhante à de uma vaca ou de um porco (indirectamente focando os níveis de obesidade que a carne e a carne de porco poderiam causar). Não surpreende que os hábitos alimentares do estudante que fez a observação não incluam vaca ou porco e certamente reflectem o que a sua família e parentes sentem e conversam sobre a comunidade de pessoas que consomem esses alimentos.
É, pois, bastante surpreendente, que quase 400 anos depois, as peças de Shakespeare possam ser relevantes num contexto removido do cenário original, convocando tabus sociais e discussões alimentares que são contextuais e recentes. Nunca se poderá determinar se O Mercador de Veneza de Shakespeare foi escrito para denegrir os judeus ou apenas para ser representativa das crenças e hábitos do século 16; no entanto, a peça promoveu uma discussão tempestuosa sobre alimentação e política.
References:
Pradhan, Kunal, Deka, Kaushik et al. “Beef, ban and bloodshed.” India Today. 7 Oct. 2015, http://indiatoday.intoday.in/story/beef-ban-and-bloodshed/1/493111.html.
Saulat. “Why do Muslims abstain from pork?” 09 Aug. 2011, http://www.whyislam.org/faqs/restrictions-in-islam/why-do-muslims-abstain-from-pork/.
* S. Susan Deborah, Ph.D., é Professora Assistente no Departamento de Inglês, M. E. S. Faculdade de Artes e Comércio, Goa, West India. Co-editora de Culture and Media: Ecocritical Explorations (2014), o primeiro volume na área de ecocinema na Índia. O segundo volume co-editado (com Rayson K. Alex) intitulado, Ecodocumentaries: Critical Essays (2016) foi recentemente publicado por Palgrave Macmillan. É destinatária (juntamente com Rayson K. Alex) da ASLE-USA Media Subvention Grant para a criação de um espaço de vídeo interativo para uma bolsa em ecocinema. Os seus interesses residem nos estudos alimentares, na ecologia e no ecocriticismo.
.
.
The classroom politics of food
in Shakespeare’s The Merchant of Venice
by S. Susan Deborah
The Merchant of Venice, Theatre Royal of Drury Lane, 1741
Teaching Shakespeare 400 plus years after his plays were written and performed is always a unique experience with many unexpected surprises. I engage 35 students who are in their first year B. A. The college is situated in Goa, western India. The point of reference is the character of Shylock in Shakespeare’s The Merchant of Venice (Hereafter, TMOV). TMOV has been read and analysed for diverse underlying themes and issues including food, and in this article, I will attempt to see how food habits in TMOV could lead to a display of conflict in the classroom. In the play, it is the food habits that enable the reader to understand the abhorrence of Christians and their food habits by the Jews. Shylock’s entry in TMOV is when he and Bassanio are discussing Antonio’s bond. When Bassanio asks Shylock, “If it please you to dine with us.” Shylock haughtily responds: “Yes — to smell pork, to eat of the habitation which your prophet the Nazarite conjured the devil into? I will buy with you, sell with you, talk with you, walk with you, and so following. But I will not eat with you, drink with you, nor pray with you. What news on the Rialto? Who is he comes here?” (I. iii.28-33)
What struck me in the aforementioned passage is the reference to “pork” which is used by Shylock to refer to a community of people – in this case, the Christians. The lines indicate how a community is referred to exclusively by its food habits rather than any other point of reference. While the line, “to eat of the habitation which your prophet the Nazarite conjured the devil into?” refers to a reference from the Bible, the tone of Shylock is clearly that of disgust and mockery about the consumption of a certain kind of food.
Sharing table with a person from a different community whose food habits is considered taboo is not something new. In India the prevalent caste system divides people based on their food habits alongside other diversities of caste and religious beliefs. While in Shakespeare’s 16th century, Italy shows antagonism between Christians and Jews, the present century India is no different when it comes to shunning certain kinds of food and communities consuming taboo foods. In the place where I teach and engage students of diverse religious faiths and food habits, consumption of certain foods is considered taboo even though the differences are not shared covertly but is understood and honoured. 16th century Italy seemed no different from present day India where there exists politics in matters of food between the practitioners of Hindu and Islam faiths.
The people practising Islam, like the Jews do not consume pork as it is forbidden for them, “Forbidden to you (for food) are: dead meat, blood, the flesh of swine, and that on which hath been invoked the name of other than Allah” [Al-Qur’an 5:3] (“Why do Muslims abstain from pork?”). Similar to the Quran, the Old Testament of the Bible, namely in the books of Deutronomy, Leviticus and Isaiah, also refrains the Jews from eating pork, primarily because the pig is considered unclean and unfit for consumption.
The politics of consumption of food is a point of demarcation between Jews and Christians/Hindus and Muslims. Now, while the aforementioned lines are read in my class which has a mix of Muslim, Hindu and Christian students, I find that they express conflicting thoughts with Shylock and his food habits. The matter of division over food has underlying tensions for people of diverse communities in India. The Hindus and the Muslims do not consume pork while the Christians do so; similarly the Christians and the Muslims consume beef which the Hindus do not – my class has all these groups together and when the topic came up for discussion, I find that the students were wary of Shylock’s character and felt the possibilities of the same happening in the Goan scenario. A simple remark has the potential to charge the situation and cause communal tension and hence Shylock, though empathised is condemned for his vile food remarks. Students also felt that 21st century India though has made progress in many areas that are primarily studied to make development, has still to come to terms with respecting food habits of different sections of the society. The politics of beef-eating and related violence is similar to the politics of pork-eating. While consumption and selling of beef is banned in nearly 24 out of 29 states in India, India also happens to be the world’s largest exporter of beef. The cow which is considered holy and often seen as a mother of plenty by many Hindus, gives it the status of a demigod rendering it unlawful to be killed and consumed for various purposes. India Today, a leading news magazine, in its cover story dated 27 October, 2015 writes:
“On September 28, an ordinary Monday, a series of extraordinary events led a mob of angry Hindus, most of them land-owning Thakurs, to march into that tiny galli (small street) in a fit of anger. They had heard rumours that a cow-holy and maternal to them-had been slaughtered, eaten, and its entrails dumped at an electric transformer in the village. . . . More than 1,000 people proceeded to the alley where Mohammad Akhlaq, 50, the suspected cow killer and one of the few Muslims who live in this part of the village, had just turned in for the night on the first-floor terrace. As shouts of “maaro, maaro” (kill kill)echoed through the alley, the mob barged through Akhlaq’s light-blue front door, bludgeoned his head with a sewing machine and battered his 22-year-old son Danish with a brick” (“Beef, ban and bloodshed.”)
The aforementioned narrative is but one story that captures the volatile scenario that presently exists in certain parts of India. My students are well aware of these stories and finding the same context in a 16th century text place food as an agent of conflict. The discussion on the politics of food which could not be contained in the class time, was done outside of the classroom through a questionnaire which was administered to some of the students. The answers which were of a descriptive type, dig deeper into the usage of food to denigrate a section/community of people. Shriharsha feels, “Shylock was a Jew and according to their religious beliefs, they could not consume pork, therefore he refused to eat with Bassanio and Antonio. But situations like this creates tension and if we see in the context of India where people of various religions live together, it becomes rather conflicting. We cannot ask someone to change their food habits. Further, these kind of situations magnify our cultural/religious differences and make it hard for people to sit together. One should learn to adjust and be respectful towards one another in order to live in harmony.”
Shreya Singh remarks, “One can never be judged or made to suffer because of his/her food habits and doing so creates a problem in a country like India where people have their own rituals, beliefs and customs. Being a human being, it’s our responsibility that we make sure nobody is discriminated because of different food habits” (sic).
Abhishek Thakur says, “If a situation like that of Antonio and Bassanio were to happen in India, it can cause a great problem as we are living in a society where there are many religions. A Muslim and a Christian sitting together as good friends and enjoying each other’s company will be spoilt if food habits came in between them” (sic).
While discussing Shylock’s remark and placing the same within the context of India, the students unanimously state that food habits and discrimination based on food could cause communal tension and violence. The scenario in 21st century India and 16th century Italy does not seem much different when it came discriminating communities based on their food habits. The responses of the students also reflect their consciousness about the present-day implications of food and religiosity in the larger society. In spite of diverse food habits among the Hindus, Muslims and Christians, at least in the College setting, these differences are not overtly seen or felt. But the students also don’t seem to deny the fact about the possibility of a tension which could arise because of a casual caustic remark like that of Shylock’s. Further, keeping in mind the politics of eating beef that has affected many people, a remark like Shylock’s would trigger a series of violence in the country.
On a lighter note, a student remarks, “If one eats beef and pork, their appearance would be similar to that of a cow or pig (indirectly targeting the obesity levels that eating beef and pork could cause) (sic). It is no surprise that the student who made the above remark is a non-beef/pork eater and is reflecting what his family and kin feel and converse about the community of people who consume beef/pork.
Therefore, it is quite surprising that nearly after 400 plus years, Shakespeare’s plays could be relevant in a context removed from its place of setting, bringing out social taboos and food discussions that is contextual and recent. It can never be determined whether Shakespeare’s The Merchant of Venice was written to cast Jews in a poor light or just hold a mirror to the 16th century beliefs and habits nevertheless the play did open a stormy discussion on food and politics.
References:
Pradhan, Kunal, Deka, Kaushik et al. “Beef, ban and bloodshed.” India Today. 7 Oct. 2015, http://indiatoday.intoday.in/story/beef-ban-and-bloodshed/1/493111.html.
Saulat. “Why do Muslims abstain from pork?” 09 Aug. 2011, http://www.whyislam.org/faqs/restrictions-in-islam/why-do-muslims-abstain-from-pork/.
.
.* S. Susan Deborah, Ph.D., is Assistant Professor in the Department of English, M. E. S. College of Arts & Commerce, Goa, West India. She is one of the editors of Culture and Media: Ecocritical Explorations (2014), the first volume in the area of ecocinema in India. Her second co-edited volume (along with Rayson K. Alex) titled, Ecodocumentaries: Critical Essays (2016) has been recently published by Palgrave Macmillan. She is the recipient (along with Rayson K. Alex) of ASLE-USA Media Subvention Grant, for creating an interactive video space for ecocinema scholarship. Her interests lie in food studies, ecomedia and ecocriticism.
.
.
Comer ou Não Comer: Estudos Alimentares na Academia Indiana
por S. Susan Deborah*
Enquanto na Europa e Estados Unidos, os Estudos Alimentares são já uma disciplina integrada/estabelecida em programas de Ciências Sociais e Humanas, na Índia, ainda se procura o encaixe certo e seguro para o seu caminho. Os alimentos e as suas diversas extensões ontológicas, embora atraentes para os estudiosos, não são vistos como compromisso académico sério, apesar dos artigos que são apresentados em conferências e escritos para revistas e livros. Usualmente, trata-se apenas de um encontro esporádico sem quaisquer compromissos. “Comida” ou “Alimentação”, são termos abrangentes que incluem a matéria dos alimentos, a sua preparação e produção, a distribuição (importação/exportação), o consumo, os tabus, os rituais, os símbolos, a representação que auferem nas culturas populares e as políticas nela envolvidas. Os Departamentos de Ciência e Tecnologia dos Alimentos, das Florestas, da Horticultura, da Biotecnologia, da Engenharia dos Alimentos ou da Microbiologia, também discutem os alimentos e suas atividades afins, embora dirigindo as respectivas implicações culturais para as margens. Apesar de muitos dos mistérios relacionados com a alimentação e o seu cultivo, a sua produção e consumo terem vindo a ser desvendados pelas ciências, apenas recentemente as humanidades começam a arranhar a superfície deste vibrante campo de estudos. As conferências de pleno direito em Estudos Alimentares estão na sua infância no cenário indiano, mesmo sendo os alimentos um subtema de temas mais amplos como a cultura popular, a ecologia, a gestão de resíduos, a poluição e o meio ambiente.
A recente conferência em “Comida e Cultura: Literatura e Sociedade”, organizada pelos Departamentos de Inglês e de Viagens & Turismo, do MES Colégio das Artes e Comércio, em Goa, atraiu estudiosos de diversas disciplinas desejosos de saciar a sua experiência académica em culinária (http: // www.teff.in/single-conference/international-conference-on-the-culture-of-food-li/). A conferência proporcionou uma saudável experiência de cozinha ao vivo, acrescida de painéis de discussão e de animadas sessões de apresentação de comunicações.
Neste artigo, planeio categorizar genericamente os tópicos apresentados e discutir de que modo os estudos alimentares, sendo uma interessante vertente de engajamento crítico, apenas gradualmente começam a fazer sentir a sua presença na academia indiana.
As comunicações apresentadas discutiram questões prevalentes e pertinentes em termos da expressão local, teórica, política e pessoal sobre os alimentos. Temas como a comida literária ou a comida religiosa, a política dos alimentos ou os meios de comunicação e a comida cinematográfica, a comida indígena e cultural, os géneros nos alimentos, a comida turística e cosmopolita, a comida filosófica, espiritual e cultural, a comida local e colonial ou a comida sociocultural, foram discursados e questionados.
Os alimentos, que introduzidos pelos diferentes invasores da Índia se tornaram referências de base na cozinha indiana, conduziram ao questionamento “O que é a autenticidade e como é determinada?” Na mesma linha se questionou a indigeneidade dos alimentos e como se pode validar um ingrediente − traçando o tempo da sua existência na Índia ou analisando a sua média de uso na cozinha. A maior parte dos ingredientes amplamente utilizados na preparação diária de alimentos, pimentões, açúcar, café e chá, embora ocupem um lugar firme e vital na cozinha indiana, foram introduzidos por governantes coloniais quando aterraram na Índia. Assim, a questão da autenticidade torna-se fundamental na avaliação do palato alimentar de uma região e lugar específicos.
Sendo a produção dos alimentos uma área importante nos estudos alimentares, na discussão florescente sobre alimentos orgânicos e agricultura caseira e de origem local, o papel do produtor dos alimentos de base, o agricultor, é fundamental. Enquanto as crianças aprendem nas escolas primárias indianas que a agricultura é a espinha dorsal da Índia (da economia indiana, para ser mais específica), a realidade perturbadora dos suicídios em massa de agricultores, que ocorre em estados como Maharashtra, é apenas uma gigantesca inclinação na balança da sustentabilidade dos meios de subsistência e das economias. Embora existam inúmeras políticas dedicadas à alimentação, a inclusão nessas comissões da principal parte integrante interessada, o agricultor, é negligenciável ou inexistente. The Hindu, um jornal diário inglês popular, relata 3, 228 suicídios diários de agricultores no estado de Maharashtra, em 2015,
“O suicídio de agricultores alcançou um pico sombrio em 2015. O ano que havia registado 2.590 suicídios até Outubro − o maior número desde 2001 − registou mais de 610 mortes apenas nos dois últimos meses. O número de mortos em 31 de Dezembro de 2015, situou-se em 3228, indicando que a série de medidas que o governo empreendeu ao longo do ano, falhou em deter a tendência perturbadora.”
A falha, por parte do governo, em integrar os produtores de alimentos como sendo uma unidade integrante da economia, tem gerado uma lacuna entre os produtores e os consumidores de alimentos. Por isso, torna-se importante que os legítimos produtores − os agricultores, os pescadores, os padeiros ou os pastores de gado − se assumam importantes partes interessadas, num país multi-social como é a Índia.
© tiNai Ecofilm Festival
Semelhante à exclusão dos produtores de alimentos na hierarquia social e política, é a questão das divisões sociopolíticas de casta, com base no que é consumido e no que não é. Os alimentos tornam-se importantes indicadores-de-castas, levando a casos extremos de tabu. As castas superiores consideram qualquer forma de comer carne como uma prática indigna e relegam a carne para o “outro”, geralmente mantido à distância; os seguidores de religiões onde comer carne é a prática normal, são vistos como imundos e impuros, sendo assim criado um abismo entre sistemas sócio-religiosos. Sendo a Índia um país diverso e vibrante, tem hábitos alimentares que são peculiares a cada comunidade e muitas vezes estas comunidades estão divididas entre si, com base nas práticas e costumes alimentares.
Essa diversidade de práticas e costumes alimentares na Índia, tem visto representações múltiplas na literatura, na fotografia, nos recursos virtuais e em documentários. A recente conferência acima referida, identificou o alimento como um tropo que serpenteou através da diáspora, da história, do feminismo, da religião e dos filmes. Nos estudos das diásporas, a comida tende a ser um marcador cultural do lar que é deixado à margem; o alimento é muitas vezes visto como uma conexão com as tradições e as memórias familiares. O sabor dos alimentos, especialmente, como tesouro de memórias e saudade. Enquanto a literatura providencia diferentes exemplos de alimentos que podem ser ligados a uma infinidade de emoções e experiências, os documentários são um outro medium que usa a imagem da comida para expor ou restabelecer várias correntes políticas e socio-económicas.
Hábitos alimentares em desaparecimento carimbam a identidade de uma comunidade, culturas substituem um item alimentar por outro, o exótico torna-se tão indispensável como o nativo − estes, alguns pensamentos discutidos no contexto comida e cultura.
A urgência e a necessidade de ver o alimento como tema de discurso crítico está gradualmente a ganhar posição na academia indiana, especialmente nas ciências humanas, uma vez que o alimento é uma parte integrante de uma política maior que precisa ser discutida, criticada e questionada. A existência de leis que impedem as pessoas de comer um determinado tipo de alimento porque é considerado sagrado por uma determinada comunidade, sublinham a importância dos alimentos na Índia e como as suas funções são ampliadas nas vidas de pessoas. Cada vez mais, a comida é um tropo que é visto como um tópico para um compromisso sério. Nesta era, em que os gigantes globais estão tentando homogeneizar os alimentos através de McDonalds, KFCs, Subways e Starbucks, a necessidade de um envolvimento critico com a alimentação, torna-se vital para a academia. O perigo da comida indígena e étnica do outro, precisa de ser questionado e debatido apaixonadamente, e assim criando espaço para o componente mais básico e essencial de comida, comer e viver. Sendo ainda esta área uma estratégia de “guerra-relâmpago” (blitzkrieg) na academia indiana, não está muito longe o dia em que os Estudos Alimentares vão ocupar um lugar digno ao lado dos Estudos Culturais, dos Estudos Pós-coloniais, dos Estudos Linguísticos e dos Estudos de Género.
Referências
Deshpande, Alok. “Maharashtra viu 3228 suicídios de agricultores em 2015.” The Hindu 14 de janeiro de 2016. Web. 14 de março de 2016.
.
* S. Susan Deborah é Professora Assistente no Departamento de Inglês do M. E. S. College of Arts & Commerce, Zuarinagar-Goa, India. email: susan.deborah@gmail.com
tradução ilda teresa castro
.
.
To Eat or Not to Eat: Food Studies in the Indian Academia
by S. Susan Deborah*
While food studies is an established discipline in the Social Sciences and Humanities programmes in the European countries and Americas, it is yet to find a strong foothold in India. Food and its diverse ontological extensions, though appealing to scholars, is not seen as a serious academic engagement in spite of papers written for conferences, journals and books. It is mostly always a one-time affair without any strings attached. Food is an umbrella term which includes diverse connotations such as the material of food, its preparation, its production, its distribution (import/export), its consumption, taboos, rituals, symbols, representation in popular cultures, and the politics involved in it. Departments of Food Science and Technology, Forestry, Horticulture, Biotechnology, Food Engineering, Microbology also discuss food and related branches, albeit driving cultural implications to the margins. In spite of the Sciences, unravelling many mysteries connected to food and its cultivation, production and consumption, the humanities have just began scratching the surface of the vibrant field of study. Full-fledged conferences on Food Studies are at its infancy in the Indian scenario nevertheless food has been a sub-topic in broader topics such as popular culture, ecology, waste management, pollution and environment.
The recently concluded conference on “Food and Culture: Literature and Society” organised by the Departments of English and Travel & Tourism, MES College of Arts and Commerce, Goa, attracted scholars from diverse disciplines to satiate their academic culinary experience (http://www.teff.in/single-conference/international-conference-on-the-culture-of-food-li/). The conference provided a wholesome experience of live cooking, panel discussions and lively sessions of reading papers.
In this article, I plan to broadly categorize the various topics presented in the conference and also discuss how food studies, though an interesting part of critical engagement, is only gradually making its presence felt in the Indian academia.
The papers discussed prevalent and pertinent issues in terms of locale, theory, politics and personal expression of food. Topics such as The literary food, the religious food, the politics of food, the media and cinematic food, the indigenous and cultural food, the gendering of food, the touristic and cosmopolitic food, the philosophical, spiritual and cultural food, the colonial and local food and the socio-cultural food were discoursed and questioned. Foods which were introduced by the different invaders of India and have now become staples in the kitchen led to questions such as, “What is authenticity and how it is determined?” Along similar lines, indigeneity of food and how one can validate an ingredient – tracing the time of its existence in India or by analysing its usage meter in the kitchen. Most of the ingredients that are extensively used in the preparation of daily food, viz. chillies, sugar, coffee and tea, though occupy a firm and vital place in the Indian kitchen were introduced by the colonial rulers when they landed in India. Thus the question of authenticity becomes pivotal in assessing the food palate of a specific region and place.
Food production is an important area in food studies. In the burgeoning discussion of organic, home-grown and locally sourced food, the basic producer of food—the farmer’s role is indispensable. While every child in school learns in her primary classes that agriculture is the backbone of India (Indian economy, to be specific), the disturbing reality of farmers’ mass suicides in states such as Maharashtra is but a gargantuan tilt in the balance of sustaining livelihood and economies. While there are numerous policies devoted to food, the integral stakeholder, the farmer’s inclusion in these committees is negligible to nil. The Hindu, a popular English daily reports that there were 3, 228 farmer suicides in Maharashtra State in 2015,
“Suicides by farmers touched a grim high in 2015. The year that had recorded 2,590 suicides until October − the higher ever since 2001 − went on to register 610 more deaths in just the last two months. The death toll on December 31, 2015 stood at 3,228, indicating that the slew of measures the government undertook through the year failed to arrest the disturbing trend.”
The failure by the government to integrate food producers as an integral unit of the economy has caused a gap between the producers and consumers of food. It therefore becomes important that the rightful producers ― the farmers, the fishermen, bakers and cattle-herders − become important stakeholders in a multi-societal country like India.
© tiNai Ecofilm Festival
Similar to the exclusion of food producers in the social and political hierarchy is the issue of the socio-political divisions of caste based on what is consumed and what is not. Food becomes an important caste-indicator leading to extreme cases of taboos. The higher castes consider any form of meat eating as an unworthy practise and relegate meat to the ‘other’ who are usually kept at a distance; followers of religions where eating meat is the normal practise, are viewed as unclean and impure this forming a chasm in socio-religious systems. India being a diverse and vibrant country has food habits that are peculiar to each community and often these communities are divided from one another based on food practices and customs.
This diversity in food practices and customs in India have seen manifold representations in literature, photographs, virtual resources and documentaries. The recently concluded conference in Goa identified food as a trope that meandered through diaspora, history, feminism, religion and films. In diasporic studies, food comes to be one of the cultural markers of the home that is left behind; food is often seen as a connection to the traditions and memories of home. The taste of food, especially is a treasure trove of memories and longing. While literature provides many instances of food which can be connected to a plethora of emotions and experience, documentaries are another medium which use the image of food to state or reinstate several socio-economic and political undercurrents. Dying food habits which stamp a community’s identity, cultures replacing one food item with another, the exotic becoming as indispensable as the native – were some thoughts that were discussed in the context of food and culture.
The urgency and need to view food as a topic of critical discourse is gradually gaining a foothold in Indian academia, especially the humanities, as food is an integral part of a larger politics that needs to be discussed, critiqued and disagreed. With laws that bar people from eating a particular kind of food just because it is considered sacred for one community bears light on the role of food and its extended roles in the lives of people in India. Food is increasingly becoming a trope which is seen as a topic for serious engagement. In this era where the global giants are trying to homogenise food through McDonalds, KFCs, Subways and Starbucks, the need to critically engage with food becomes vital for the academia. The danger of othering indigenous and ethnic food needs to be questioned and debated passionately thus creating spaces for the most basic and essential component of food, eating and living. While the area is still to blitzkrieg the Indian academia, the day is not far off when Food Studies will occupy a place of dignity, alongside Cultural studies, Postcolonial Studies, Linguistics and Gender Studies.
References:
Deshpande, Alok. “Maharashtra saw 3228 farmer suicides in 2015.” The Hindu 14 Jan 2016. Web. 14 Mar. 2016.
*S. Susan Deborah . Assistant Professor, Dept. of English, M. E. S. College of Arts & Commerce, Zuarinagar-Goa, India.
email: susan.deborah@gmail.com





